quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Inconsciente da sub-responsabilidade [Jornal NH]

Inconsciente da sub-responsabilidade

Todas as polêmicas atuais têm chocado. O espanto para o grego (thaumasen) significava a parada inicial, a estagnação frente ao mundo acontecendo. Mas, ao contrário do espanto nosso de cada dia, era menos fictício, fantasioso e heteroprovocado. Fictício porque a nossa indignação não raro é cênica; fantasioso porque é criada pela nossa imaginação a partir de parcos elementos verdadeiros; heteroprovocado porque não surge como reflexão, mas como estupro ideológico. Essa danação – não sei se moral – desemboca noutros fossos: a (i)responsabilidade pela barbárie, a perseguição inquisitorial do bandido, a necessidade maniqueísta de separação entre bons e maus.
Isso faz com que, em primeiro lugar, a responsabilidade seja uma questão única de aferimento da prova; tem de ser provada, porque ninguém é de assumir a culpa do mal e a verdade é uma questão de ponto de vista. Aliás, o mal é sempre um outro-além-de-mim. De modo que o racismo, a execução de crianças pelos pais (injúria racial no Grêmio e caso Bernardo são os exemplos) tem como culpados unívocos – estritamente, circunscritamente – a) a garota que foi filmada e b) a trupe de Três Passos/RS. Ninguém mais além deles têm a ver com esses fatos, aparentemente isolados.
É algo como que uma sub-responsabilidade como fundamento da vida moral. Reconhecemos que a diferença é a lei da vida, mas queremos unidade, o este, o aqui e agora discriminado, para que durmamos tranquilos como cidadãos de bem. Sub-responsabilidade é, na verdade, a ausência de responsabilidade ou a afirmação cotidiana de nossa covardia. Quando o inimigo – o rival, o concorrente, o racista, o homofóbico – é sempre o outro, aquele além-de-mim, então ou a) estou deificado ou b) imerso num bacanal engano.
Daí que essa prosopopeia de “cidadão de bem”, “pagador de impostos”, “que está preso enquanto os bandidos estão soltos” é historieta da covardia, da incapacidade já internalizada de se responsabilizar pelo que acontece no mundo. Combater a injúria racial com baixo escalão? Dizer em juízo que sabia o que passava o menino Bernardo, mas que no fundo não se achava no direito de intervir? Retórica covarde, nada mais.
Nesse sentido, se a covardia for mais forte, mais potente do que o mínimo de reflexão, então que, ao menos, guardemos as “evidências” para nós mesmos (usemos esse eufemismo). O que não tem remédio, remediado está, e muito ajuda aquele que não atrapalha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário