-Diga-me uma verdade, disse o inquiridor.
- Elas te desagradarão, por certo.
- que sejam assim mesmo ditas...
- Por certo, fui eu que o matei!
- e te pões a dizer assim sem o remorso ou a indignação contra si mesmo?
- não me sobraram ou remorso ou indignação; ora, remorso...
- e é nisso que se baseia a minha certeza, nesse teu espetáculo de horror.
-Pois que assim o seja, que, afinal, tens de te baseares em algo para que eu possa penar a uma boa e justa mercê.
- Mas, ainda, não me sinto realizado. A justiça, para mim, não há de ser feita somente com uma cela fria. Não mesmo.
- e que mais te agradaria?
- uma retratação!
- ora, não hei de assim fazer.
- E te mostras ainda pior do que te imaginei.
- porque não me retratei?
- por isso.
- então importa mais o orgulho do que a morte?
- não é isso...
- e o que é, afinal?
- é o sentimento da justiça. Quer-se mais que punir ardilosamente. Quer-se remissão.
- achei, pelo menos, que tinha ficado à religião, quando da separação, a remissão dos pecados. Estou errado?
- não zombe da Corte ou da Santa Igreja. Já basta o mal que fizeste.
- qual o quê?? Zombar de tamanhas instituições, quem sou eu...
- me pareces um belo pagão e anarquista.
- deveras que não. Temo a deus e ao estado.
- ora, não deves temer ao estado.
- não mais que a deus?
- a deus não deves temer.
- e ao estado?
- ora, por certo que não, céus...
- julgava-os semelhantes...
- e por quais razões isso agora?
- por conta de suas magnitudes...
- magnitudes...por certo que há. Mas não se deve temê-los.
- não a deus. Ao estado, talvez...
- talvez a deus, ao estado jamais.
- talvez a deus?
- por certo que é um desconhecido. Não se sabe do poder e ira.
- por certo.
- mas do estado se sabe. Quão limitados são os seus poderes.
- o são para a justiça.
- como?
- o são para a justiça, mas para a injustiça não se sabe até onde vão.
- o que te pões a dizer? Que é o santo estado um injusto? Como pode?
- decerto que o é antes de deus, que não merece tantos adjetivos quanto no colocamos.
- o que é isso? É mais um de seus equívocos. Pensar o estado assim, qual o quê?
- nunca pensou o estado assim?
- por certo que não...
- então nunca pensaste.
- por certo que sim...
- o estado assim ou genericamente?
- o estado assim, que por certo sempre penso, por deus!
- então já não foi bastante, que afinal não pensaste no estado assim...
- talvez...
-talvez qual o quê?, por certo....
-não tanto em euforia...
-ora, e por qual não?
- ora, digo eu, que afinal sou o inquiridor.
- e isso pouco te vales. Fala não por si mesmo, mas por outro.
- pelo estado, decerto, como servo da justiça...
- ora, não te ponhas...
- por certo que é isso uma justiça e tua conduta uma afronta.
- à justiça, que seja, mas qual dessas, tantas que há?
- por certo que em nenhuma te cabes...
- e isso agora? Porque, afinal, minha justiça não é?
- porque te afrontas ao estado, já se disse...
- e a afronta ao morto, não te somas?
- decerto. Mataste a ele, afinal, e não ao estado...
- por certo que o de cujus foi merecedor?
-ora, e não sabes, afinal que o matou?
- isso é coisa certa-
- que não o foi merecedor?
- que o matei...
- e é coisa de se admitir assim? Sem tentativas?
- defesa?
- emoção, talvez?
- te pareces uma boa?
- melhor do que a frieza com que te pões...
- mas por certo será mentira...
- e isso agora? Decerto que é de se usar, afinal que existe...
- talvez, então, emoção, porque não se mexeu o vil, para que fosse defesa...
- emoção, que seja. Há de ser sustentada...
- mas e houve?
- tu o mataste, não sabes?
-não houve...
- então diga que foi defesa.
- não houve...
- e não te queres safar?
- por certo que melhor é a liberdade, mas...
- então te apegues a esta, ora....
- defesa, que seja.
- e houve?
- por certo ponto de vista...
- ou houve ou não houve...
- houve, só não havia pensado como defesa...
-então sustente, que afinal vale...
- mas e a minha retratação?
- a quero, ainda, ora...
- mas se é a minha tese a defesa?
- então confessas a defesa, que afinal é uma de suas formas...
- defendi-me, então..
- acato. Que corra o processo, porque afinal será mais uma legítima defesa.
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