Engole seco o ar que entra. A terra apoucada e o rastro quase imperceptível, pó lívido e sem graça, cor de areia sem cheiro. Tudo sem, tudo sem, nulidade fresca, temperamento de espera e de gente vagal. Por que isso, por que isso?, era certo que pediriam, cedo ou tarde, logo ou antes de morrer. Antes fosse quando partisse, que deixaria de sentir vergonha, ou sentiria menos. A mulher de túnica não piava, o olhar do macho a hostilizava, orientando sua ideia, seus hábitos, os desejos cabisbaixos e a retina seca.
Naquele dia deu de perguntar se era real ou fingimento. Não propriamente o que fazia, mas propriamente o que era. Era, afinal? Gemia o trem de carga, resoluto. Ardia o ferro, ardia o aço, as manivelas rodavam, tudo em ordem. Os dormentes acordavam pelo solavanco, friccionados pela carne da sua carne, ferro do mesmo ferro. Ela recostava à janela, com esperanças. Comprara túnica nova quando deveria ter comprado novos livros. Isso pesava na consciência. Amava o marido, mas amava o vigilante noturno, à socapa. Que vida era aquela, o que era? Mas nesse ponto não era de remorsos, não espinafrava contra si. A lua também recém entrara em Júpiter. Se bem que poupara o trabalho de comprar túnicas no futuro.
Mas e aquele sacolejo? Enjoava? Se bem que sim, se bem que outros enjoos piores sentia. Fitava o esposo. Boba não era, nem retardada. Avoada era, a bem da verdade, mas isso também o marido, que era, esse sim, bobo também, que acumulava essas duas funções. Mas não era uma vida boba. Se boba fosse tal vida, não renderia tanto. Não faria nascer uma pergunta como: é isso real ou fingimento? Se fingimento for, bobagem decerto não há de ser. Vamos casar?, foi o que disse um dia, ela mesma, àquele avoado e bobo.
- Quero basicamente! Mas tenho exigências.
Com exigências ele não aceitaria.
Mas sem exigências aceitou ela.
Deus, àquela hora, pintava uma tela o céu, distraído. Não no céu que é o contrário do inferno, no céu físico, de nuvens. Fazia pequenas carreiras de branco no azul. Mas não tinha dom. Era como criança, aprendendo apenas a deslizar o dedo sobre o guache. Fazia mal e parcamente. Mas era um começo. Ela observava a dedicação desse deus. Ela tinha noções boas dessa arte. Contaria a deus tais técnicas, mas ele estava muito longe, fora do trem, que corria ligeiro demais. Fricção da carne pela carne, ferro pelo ferro. Mas pensar que não deveria ensinar a deus, isso não pensava. Ensinaria se possível fosse. Ai que obra grotesca, deus! Espera, ei de te ajudar nisso, ou te incomoda? Incomoda jamais! Segure minha mão, mas ela, muito professora que era, não seguraria a destra de deus, apenas indicaria o caminho, vá por ali, por aqui, por acolá, deslize mais suave os dedos, quer pincel? Deus recusaria o pincel, porque tem como tal ferramenta os dedos, tão criadores. Tenho os dedos, tão criadores, diria, e ela, muito boa de conversa, diria apenas, tudo bem, mas não tens dom.
Se deus era de se espantar, não sabia ela. Ninguém sabe dessas coisas. Mas para ela deus diria apenas, não tenho dom?, e ela conversaria deus, perdão, mas não, não tens dom para a aquarela, não sabes tu dessas coisas. Isso era verdade: ela era sincera ao extremo. Não feliz, sincera. Mas ser feliz não vem agora ao caso. Ela fitava ainda o firmamento. Deus, contudo, permanecia alheio a essa trama. Pintava pateticamente, mas tinha uma leve sensação de que era observado, mas como não tinha o poder de administrar todos os olhos do mundo, senão o próprio, duvidava.
Por que ela mesma estava ali? Não era para ajudar a deus a confeccionar uma obra de arte. Era para algo, certamente, ninguém vem ao mundo sem um propósito. Passa a vida sem encontrá-lo, passara ela a vida sem encontra-lo, para então atinar: o propósito da vida é achar um propósito que é o próprio propósito. Mas isso não a contentou em nada, nadinha. Era como se tudo fosse senão corredor, sem sala de espera, sala de visitas, jantar. A vida, uma casa-corredor. Deus estava nas paredes, não na luz. A luz mesma não existia, não como fim. Ela nunca crera piamente nisso, luz no fim do túnel, apenas uma leve sonda inspirava seu peito. Esperança ainda criança, que aos poucos ia sendo morta ainda antes da puberdade. Casarão em ruínas essa coisa dela, esse seu íntimo, mais íntimo que ela mesma nua, desanuviada, aberta para o capitão, para o marujo também, que não era de olvidar a natureza uma desses homens todos, dignos, nesse ponto, de saciedade, fisiologia universal.
Deus se afasta, vai fazer algo melhor que arte, vai contar, calcular, projetar, erguer, matar, fazer viver. Tudo que faz melhor que arte. O céu fica só azul, mais unívoco, mais chato.
Distraída com a túnica, fazendo pac pac pac, unha brotada de si impaciente contra a árvore morta, feita banco duro de trem sem bancos. Tudo improviso desses amigos, desses permissivos agentes da Companhia Ferroviária. Quem tem amigos tem um tesouro, que não se perde, que não se vende, ou que, se se vende, se perde, perdendo a quem vende. Não gostava de coisas bonitas, muito prontas, inventadas com um fim único, imprestável aos fins outros, que eram maioria, que são tantos. Mas ela mesma era tabaroa demais, nesse ponto. Despreparada, trivial, encantada.
E foi assim quando desencarnou.
Os traços eram breves e simples, mas nem por isso podiam ser tocados. Era um tom escuro de noite adiantada, um canavial que farfalhava, existindo. Era ela uma flor patética de giz desenhada – num escarlate encardido – sobre o cimento rústico, no lado de onde o cruzamento desajeitado de linhas formava a quadra para a amarelinha. Pousava acima da imagem de giz uma contraluz, um fiapo fugidio de claridade rara, cadarço finíssimo de trepidante ondulação. Noite de leves ventos.
Chorava sobre um crucifixo a mãe, embasbacada, retina grudada no Nosso Senhor de bronze, braços esticados no patíbulo, triste madeiro secular. Ora aqui, ora no parapeito da janela ou no limiar da porta. O que queria por último é que lhe viessem ralhar por tão só estar ali depositada, sem procura, sem preocupação. Já se apegara àquele nazareno, aos santos também, entidades de menor estima, mais ordinárias, mas de boa valia. Tudo isso se somava como esforço suficiente, decente, como mãe zelosa, que se trata da ingratidão na fé, no apego fiel às imagens, às rezas triviais que sabia, não se pode dominar todas, que são muitas.
Daí que ali jazia. Que alguém viesse lhe ter por aquelas paragens, longe assim da estrada, era coisa que pouco ocorria, senão para se trazer más notícias, boas corredoras, bem se sabe, afinal é quase um rejubilo anunciar uma catástrofe, ser porta-voz do desencanto, do vencimento, da morte.
Mas aquela, filha desta, acomodava-se com a ponta dos pés no giz e no cimento. Dava mínimas voltinhas sobre a areia, que se desprendia do chão, sujando as sandálias. A chita bagaceira e a gaze do suor estavam secas. O tecido era vívido, fazenda escura, contraste com a tez pálida, drenada. O laço do cabelo deitava indiferente sobre as pequeníssimas dunas, intocado. Nem o vento quisera tocar aquela prova, aquele indício de imundice. O fraco balançar dos galhos era não mais do que a propagação do impulso imoral, ceticismo congênito, força mitigada mais e mais pelas leis vulgares da física. A aceleração zerou, ela parou.
Mas a brisa deu de aparecer para a mãe, então fechada em casa. O círio ainda queimava. O altar de Santa Bárbara cheirava a mel e canela, pinicando as narinas de gesso da Iansã. A mulher ainda rogava, murmurando. Não tivera saído à rua para catar a filha, valiam-lhe as divindades, assaz melhores no quesito busca. Contentou-se a pedir àqueles entes. Era já hora de deitar-se. A esteira dura e solitária a esperava, mas ela retardava o ato. Lavava-se duas, três vezes, secando os calcanhares com a estopa. Aquecia a água do chá e deixava que se esfriasse, para renovar a solenidade, procrastinando o sono. Era comum que as notícias ruins lhe chegassem pelo sonho. Era o seu porquê, a razão da reticência. Mas, naquele instante, mais do que o medo abstrato, genérico, percorria-lhe um medo concreto, específico, capaz de ser orientado pelos acontecimentos recentes. De súbito apareceram as vozes dos conhecidos a dizer, Não foste procurá-la, não foste procurá-la? O sonho se ia esculpindo, matizado, induzido pelos fatos reais, duros reais. Acudia com as mãos na cabeça, frasco atônito, arrancado os cabelos e o tormento. O sonho. O sonho. Atiçou o fogo de lenha, que crepitou. Um alarido de madeira fervendo sumiu pelo corredor e desapareceu. As labaredas lambiam, mexendo, e serpentes alaranjadas davam ligeiros botes umas contra as outras, sombreando o feito na parede suja. Preciso de camomila não, pensava. Não por hoje.
Havia, enfim, cessado de dançar. Se o vento surgisse, seco e gelado, faria afago nos cabelos e ergueria aquele vestido, desvelando, a lamber intermitentemente as ancas, quadris novos, ainda não sonhados, sequer quistos com desejo, nada disso. Tão débeis pernas ainda, implumes, atravessadas na vertical por finíssimas agulhas de cálcio, periósteo. Antes rodando, gemendo, agora quietos, silentes como a rua escura quando não se tem mendigos. Pobrezinha. Tímida. Queridinha. Apequenada. Rústica. Patética. Pedante. Criança. Mulherzinha. Sinhá. Rameira. Vulgívaga atroz. Tudo isso. Nada disso. Antes rodando, mas não veio mais vento. Por que viria? Escuro, frio e imóvel complexo de coisa. Constructo, se se pode falar nisso. O cimento, o giz, o cadarço, a chita com a gaze combinando. Nada lhe dava importância, mesmo agora. Nenhum se lembrava de frases suas, de melodias que gracejava, anedotas que dizia, se dizia. Tudo pior estava agora. A brisa sequer se comovia. Durma agora, apenas. Durma sem balbúrdia, sem tempestades duras. Se desejasse o bem aos outros, seria ela triste, mentirosa, ingrata, dissimulada. Primeiro desejaria a si mesma, tal como era.
- Menina, menina. Deseja isso e isso passa, basta querer, basta querer.
Grande besteira, poderia pensar ela hoje, se pensasse. Cadela era aquela que essas coisas mentia. Chão tão duro, mais macio, porém, que tanta conclusão, essa chegada doida a lugar nenhum. Havia feito tudo, estava lista. A conclusão era a falta de dúvidas, certeza pontilhada num solo límpido e nada metálico. Ficava de ponta cabeça nessas horas, que o cérebro melhor se irrigava do encarnado puro, espesso. Era doida varrida, como falavam as carpideiras. Como dizia a sua mãe. Tantos santos, tantos deuses. Tanto o que fiz para te merecer? E o único amor serão essas conclusões, amores?, queria saber ela.
- Amor é amor e pronto e ponto. Vais saber quando acontecer.
Ela não era disso. Não sabia. Não houvera jamais percebido. Exigiam demais, mais e mais coisas que são exigidas de todos, sem distinções. Que falta grave esta, que sequer se assemelhava ela às garotinhas dondocas, de brincadeiras. Cortava as cabeças das bonecas e jogava no regato. Tocava-se freneticamente e em público. Foi levada ao psicólogo, homem tosco, agasalhado em conceitos, que sequer saíra detrás de sua mesa para dar o diagnóstico. Qual era mesmo o veredito? Hiperatividade, mas o psiquiatra achou que ela fosse maníaca depressiva. Tanto fazia agora. Chegou a tomar umas pastilhas. Sustavam os surtos, mas não o luto. O seu luto seu de cada dia. Odiava as coisas idiotas escritas nos diários. Bobagens, tolices, veleidades pobres. Pobreza intelectual mesmo, de sentir pena. Esperar não era otimismo, era única solução. Foi muito de rabiscar mensagens daquele mesmo otimismo nas agendas velhas. Depois lia e desatava a chorar.
E se tudo isso for faz-de-conta? Tudo. Tudinho. Cada sentimento, cada boa ação. O que era real para ela? Era ela mesma real para si? Para os outros era real? Real para si? Ela nem tinha sentido. Achava, conspirava sobre isso também. Não tem sentido. Mas certo era que buscava, queria inventar esse sentido, a cada dia, sempre. A ilusão é melhor que a morte.
Um uivo de cio reavivou os olhos da mãe, quase já perdidos pelo sono. Pouco importava o som àquela altura. Fazia pouco caso desses instintos animalescos. Em si, dentro das próprias chagas, também repinicava um uivo agudo, não de desejo, de dor. Dor de quê? Dor de nada, vazio lacônico, de pertencer a si mesmo. Era a herança àquela descendente, ainda a pairar sobre o indiferente cimento, inexpressivo giz.
Era mãe, tudo podia, nada podia, senão permitir, omitir, retro aparecer em memória. Esparsas cantigas, projeções lúgubres do eterno fardo da maternidade. Morreria estremecida, mas nem extinta estaria o ser-mãe. Era mãe e a morte não era um ponto final, fim lúdico ou trágico da provocação. A teve tão nova, sem alívios, quem dera ter podido ser melhor. Boa mãe, como ser? Para que ser? Para quais olhos afixar a nota de boa moça? Capaz que boa moça era, capaz que boa mãe seria. Dias de dor, carne e osso pressionando-lhe o útero, as entranhas hospedeiras, o rosa vívido do seu canal sendo hostilizado, lacerado por um corpo estranho. Para sempre estranho, nunca mesmo familiar. Pedaço de coisa que, já ao nascer, provoca dores, mas é ela mesma quem chora, essa coisa, esse corpo, esse ser. Metade mãe, metade pai, morfologia dúbia, duplicação imperfeita, erro congênito. Era não esperança, mas objeto, mistério carolíngio e transeunte pura. Por que ali surgira? Breu era o céu, breu era o sol, mero acinzentado logo antes de tudo. Preto. Era crepúsculo isso tudo. Forjada, forçada, atrelada como mão forte ao coice do arado, rasgando o chão fértil, ainda quente de pequenos vermes, levados dali no bico das rapinas, ou de pássaros de menor escalão, aves grosseiras. Agora era mãe. Ponto. Fato. Constatação simples e irremediável. Pescou com os olhos.
Quieta ainda permanecia. A língua, aos poucos, se arroxeava. Ainda não fedia, mas quase. O que tivera sido, que importa. Não importa, nada, nem um pouco, carne estragada, arruinada, desfazendo-se como o frango que chia sobre a chapa. Somente o antigo cadarço ligava suas extremidades. O cérebro ativo, guardião, àquele mesmo tronco de sempre, esquálido, mesmice sem graça que era. Que nojo, que repulsa. Que indignidade, levada pela aragem do dia que amanheceu.
Ela vencida. A mãe vencida.
Ela pela morte. A mãe pelo sono.
Ambas ali, como se morte e sono fossem a mesma coisa. Um mês e ela o que seria? Um mês e quantos sonhos a mãe haveria de ter dormido? Bem que ela fez, bem que ela fez.
Depois chegou a perícia e tudo virou burocracia.
Fim!
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