João Gilberto Engelmann
Já Lévinas (1997) questionava sobre a fundamentalidade da Ontologia e sobre a função que exerce no mundo pós-moderno. Do ponto de vista metafísico, a reflexão sobre o ser ganha, a partir da modernidade, novas formas e uma estrutura fundante diversa, radicada na libertação do sujeito e na postulação de um ente físico e temporal.
Herdeiro da problemática posta por Heidegger, Lévinas transcende o sentido do desvelamento e mantém uma estreita relação com o sujeito histórico e material, condição da liberdade e da autonomia, enquanto sendo a razão do ente conectado ao ser, que interage sob o signo do autrement, disposto a figurar para além do soi-même. Disso resulta a conexão entre eu transcendental de Kant e a figura ontológica do ser histórico de Hegel, mas sem qualquer filiação dogmática ao apriorismo kantiano ou à suficiência das determinações históricas do espírito objetivo hegeliano. O eu levinasiano se estabelece mediante a inteiração face a face, que registra, de um lado, a unidade e a referência que cada ente representa e, doutra banda, a sua fundamentação última, que é a relação e o compromisso não-recíproco com o outro. Nesse sentido, Lévinas foge à tipificação da intersubjetividade como um jogo artificial de o ser feito ente se relacionar sem de fato penetrar na complexidade e estrutura do outro. O compromisso do eu com o outro é desinteressado, e a responsabilidade está fora do campo da retribuição.
A percepção que teve o filósofo foi a de que a fundação do novo paradigma metafísico, ainda em Heidegger, somente desesperou a tradição do movimento de reconhecimento da dignidade do outro, mas manteve as determinações que ligam, no dizer de Habermas, os interesses vigentes na sociedade civil. O que fez Heidegger foi desenvolver uma filosofia que analisou o processo de entificação do ser, uma superestimação do conhecimento e uma fuga da universalidade na qual se funda o ser, enquanto ideia que torna os entes racionais.
Nesse sentido, a (re)fundação do problema metafísico, sob o prisma então ontológico, precisa, com a modernidade, levar em consideração a) a existência da subjetividade como um pressuposto real e b) as determinações que registram uma fuga do ser enquanto menção à essência e a postulação de um ser ôntico, volátil e exterior. Nesse contexto, o desafio ontológico é, justamente, fazer coincidir a estrutura do sujeito psicológico e exterior com o eu transcendental que, já em Kant, representava a dimensão da pergunta transcendental, que torna o sujeito um além de si, uma interrogação sobre a sua própria existência ética e metafísica.
Diante de tamanho cenário, a tarefa a qual se propõe Lévinas é, do ponto de vista do desafio ontológico, afastar o ser do plasticismo que ganhou vazão no movimento contemporâneo de resgate à dignidade do sujeito, que no Direito representou a fusão e postulação dos Direitos Fundamentais, em que o sentido conceitual se afasta totalmente da ideia de dignidade. Sob essa ótica, a tentativa levinasiana se afasta de qualquer endosso rarefeito, que tenderia a representar a intersubjetividade como um meio pelo qual o eu isolado adquire conteúdo. Esse movimento, tipicamente presente no idealismo alemão, sobretudo com a filosofia do espírito de Hegel, não põe o outro como outro, mas sua subjetividade como mediação necessária ao caminho da efetividade.
Todavia, ainda assim o ponto residual está posto no eu isoladamente. A relação intersubjetiva parece não representar, como seu enunciado poderia fazer surtir, uma verdadeira dignidade no ser outro. Se o eu absoluto é a reflexão do conteúdo, oriundo da mediação e da suprassunção, disso se pode concluir uma interação exterior. O ser outro some da vida do eu absoluto depois da mediação, denunciando o caráter puramente exterior que essa inter-relação mantém em relação àquele que se apresenta ao sujeito.
Assim, o outro levinasiano ganha um status radicalmente distinto. Passa a representar uma razão que condiciona a própria ação do sujeito, carregada de responsabilidade. Mais do que isso, essa responsabilidade não compromete o outro, não faz com que ele deva, em contrapartida, resistir à sua subjetividade e se tornar também responsável.
Nesse sentido, o pensamento condiciona a experiência do particular, como meio de se fazer presente, de se entificar sem deixar o ser. O sujeito, se, por um lado, não é pura consciência e, ao mesmo tempo, não é pura exterioridade, se apresenta numa terceira figura, enquanto consciência livre, que, não sendo a totalidade mesma, a ela não se diferencia, porque conclui uma unidade de si que não prescinde do ser e de sua particularidade. Todavia, diferentemente de Hegel, a particularidade que regula o ser é absoluta, que não se condiciona pela relação.
A totalidade é, assim, além de momento uno e sem o pensamento, enquanto ser puro, totalidade reconhecida no ente, que se apresenta como a forma particular de ser do ser, muito mais do que a aparição unilateral do ente, em que se supera a supremacia deste e se finaliza uma unidade do ser no ente, que passa a existir para si e para outrem.
Referência
LÉVINAS, I. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 21-49.
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