quinta-feira, 26 de março de 2015

Trem de quem vê

O braço podre do homem caiu do nada. Esfacelou-se e fez lodo no chão: cartilagem, sangue e um líquido esbranquiçado. A essa altura o trem já escorria resoluto. Um minuto depois – nem isso – um quadrante do rosto seguiu o mesmo destino, vindo a respingar no jeans anos oitenta de um jovem mongoloide que lia Parerga e Paralipomena. Este tão só recolheu a perna, sem tirar os olhos do texto. O gordo em preto que vendia balas só fez um ah. Um velho destroçado pelo tempo apenas resmungava quase inaudível zwölf, dreizehn, vierzehn, enquanto ia baixando os dedos na palma da mão.
Com a mão que restou o homem segurou o maxilar. As falanges deploráveis se reduziam a osso desnudado e couro péssimo. Já não conseguia falar. O ar vindo dos pulmões vazava antes de a língua articular o som. A porta abriu-se depois de um breve zumbido. O homem saiu, esbarrando num e noutro. Deixou o braço, o quadrante do rosto, que foi pisado e levado para casa na sola rústica do marceneiro, do padeiro, do advogado.

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