quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

[fragmento]

Quanto atravessei o Largo de Porâ, deixando de vez para trás aquela gente, dei-me conta, a rememorar o que recém me haviam dito, que sou um homem de pouco ou quase nula ambição. Para quem se intervém para dizer coisas do tipo isso é bom, que bom, és um homem melhor e mais apropriado a contrabalançar este mundo materialista gostaria de dizer meia dúzia de impropérios que a educação formal que tive retalha. O fardo é, sobretudo, o de não poder abrir os olhos, não sem antes ter presente na cabeça cada uma daquelas cáusticas – ainda que simplórias – palavras.
Entrevi, pelo arvoredo, um risco de sol se projetando no chão, e a realidade se dava com uma dureza naturalística, incapaz de ir além de si. Que é feito de um homem cuja ambição é irrelevante? No fundo, é mais do que isso. É a ausência de qualquer tipo de gosto radical. Como todos os nossos que não deram para a matemática ou para as ciências sociais e, como num ímpeto, jogaram-se numa profissão qualquer cujo gosto é pedir demais. O sol desce com preguiça num horizonte sujo, gravado de pequenas caricaturas sem técnica – a causa material é nuvem; a causa eficiente é deus.
É se, também em ímpeto, fossemos nós hoje atrás de uma causa eficiente de nós mesmos, um além-mundo do objeto que somos? Essa me parece – ainda mais hoje – uma tarefa cuja preguiça me repele com bastante coragem; e, já que ainda pesa uma constatação do tipo, eis a metafísica, a última dose de desânimo poderá, então, correr livre do centro para os membros em companhia do meu sangue arterial. E isso - desaconselhar uma peregrinação fatigante pelos terrenos pantanosos do além-mundo e que é, afinal, também um além-homem – me liga com certa precisão ao tempo presente, à vida que escorre entre os dedos naquilo que já se disse ser a liquidez da modernidade tardia. Eis, pois, o que ora sobra para o espírito do tempo: a completa repulsa ao não imediatamente dado; ao vir-a-ser que se constrói como o maquinário do pensamento. Dentro dessa delimitação precária – cujo método de escrita me trai e me afasta, aparentemente, das linguagens abreviadas de um tempo abreviado pela precisão do trabalho e renda – estou eu mesmo de alma natural, ainda que os domínios da linguagem parecem, ao menos em mim, mais do que nunca se erguerem com copiosa saudação à Filosofia.
Nesse pequeno aparato, jogo simples e quase contraproducente de palavras, vou me ater a aspectos que me são correntes e aos quais destino pouca referência e reverência, já que, no fundo, não lhes credito mais do que simples e equívocos adjetivos: tudo tem se tornado substantivo. Não porque a Filosofia tem falhado com grande margem, mas porque as suas insinuações – que são mais caráter vulgar do que ciência – continuam atuais, ainda que extremamente remendadas por seres que imaginam as estar atualizando espacio-temporalmente.
Nesse aspecto a overdose é causada pelo soçobrar de consensos, mais ou menos firmes no tocante à matriz genética, mas ao redor de cujo eixo orbitam variações. É como uma teoria da justiça que parte da premissa de que o capital não pode ser vencido. Dentro dessa triste constatação – cuja fraqueza da enunciação de pesar explicita que, no fundo, sempre se foi de um partido que se julgou opor -, e que é o eixo comum aquele, temos os que dizem variações da premissa mãe, cujas tendências vão de um direitismo radical a um aparente esquerdismo de proporções não levianas.
Apenas de todas essas retóricas serem impessoais – é um dogma científico do qual somente a especialização nível máster detém – elas dizem sobre o sujeito fundador da pesquisa, uma causa eficiente, uma subjetividade última a quem é dada tomar o rumo e a filiação ideológica necessária para que a dissecação não pare. Para mim, todavia, um discurso minimamente claro deve ser feito em primeira pessoa. Nesse aspecto, as aulas de dissertação da educação formal têm o menor dos sentidos. Não há, pois, seriedade alguma. Contudo, a ciência tem suas motivações; hoje outras do que as antigas, mas ainda nenhum rato tem suas vísceras necrosadas senão com uma razão bem definida e que, no seu sentido constitutivo, não pode ser somente o progresso dela mesma.
Eis porque a questão da ambição surge. Ela se liga, justamente, às motivações que nos arrebatam e, inconsciente que são, conduzem a uma espécie de letargia da consciência. Nada sobra a um homem sem ambições, senão que terá de escolher, dentro das atividades disponíveis, algo com o que possa tocar a vida até a completa desorganização interna de sua constituição celular. A Filosofia, contudo, é uma contraindicação. Às objeções do tipo ele não tem condições de dizer o que diz ou, ainda, quem ele pensa que é são obstáculos somente perceptíveis pelos outros, que oscilam dentro de outra frequência ondular distinta e, portanto, são coisas próprias de quem objeta e a mim sequer dignas de se perder tempo.
Retomemos isso: só se pode falar, mesmo filosoficamente, em primeira pessoa. No fundo, é uma mistura das formas pelas quais se pode explicar um evento ou uma coisa, mas se liga muito intimamente com o conceito de autenticidade, incapaz de ser expresso em terceira pessoa. A tradição é historicismo e, basicamente, releituras de “tempos presentes” eternamente condenados a serem parciais porque morrem, desvanecem, se tornam literatura. Os discursos filosóficos pendem de um eterno revolver que define, em larga medida, a nossa própria condição de homem no mundo. Daí que escritos filosóficos ou são literatura ou história.


Nenhum comentário:

Postar um comentário