Quando, ainda criança, descobri que existiam livros que não contavam histórias e que, pior ainda, não estavam rabiscados de figurinhas coloridas, tive a primeira crise da minha epistemologia.
A certeza subjetiva de que deveriam ter todos os livros uma narrativa literária com personagens e enredos atraentes fez com que tornasse qualquer dos livros que me vinham distintos desafios à criatividade. Como se tinha inventado coisas como o dicionário bilíngue da estante seis? Não era possível que causasse, mesmo nos mais enrustidos de sentimento, qualquer atrativo. Era uma coisa com páginas velhas e pó, nada mais.
O jeito era eu modificar um pouco as histórias. Fazer com que os personagens dos livros chatos mudassem seus semblantes severos, cuja quantidade era tanta que minha criatividade infantil não dava conta de converter a horda. Talvez eu tivesse descoberto uma metodologia nova. Talvez eu não tivesse outro intento senão satisfazer a mim mesmo, sem outras maiores pretensões.
Os latidos do Sínodo me deixavam às vezes fora do imaginário dos livros, isso quando estes não eram demasiados atraentes, ao ponto de não se poder escutar qualquer ruído externo. Isso raramente acontecia, e jamais voltou a acontecer depois que completei doze anos de idade. Depois da meia noite de 10 de julho, jamais eu pude, pela imersão nos livros, deixar de escutar o Sínodo. Mesmo quando as figurinhas mostravam cascatas risonhas e um céu de azul claro, mesmo assim eu eternamente não pude entrar num sonho de realidade como eu vivi até os meus doze anos.
Depois desse tempo, eu quase pude equivaler os livros de heróis e fadas ao dicionário bilíngue, tão mortos de mágica todos se tornaram, ou eu fiz mesmo isso de matar aos poucos em mim a fantasia. Não fazia as mesmas ligações de outrora, e já não podia ver nas nuvens brancas da primavera um urso, uma ovelha ou um monstro horroroso e cheio de raiva.
Minha primeira lembrança dessas coisas que perdi eu trouxe dos três anos de idade. É pouca idade, e não se sabe de nada ainda. Nem quem se é, nem se seus pais são honestos ou se a tia solteira não se casou por conta da feiura ou da espera. É um tempo de não-ser o da criança de três anos, e um simples doce é uma alegria suficiente. Uma simples promessa de se ir à cidade no fim do mês já a deixa irrequieta por todos os longos trinta dias.
Com três anos, eu não tinha nada na cabeça, senão o desejo de traçar as letras que meu irmão deixara nos cadernos velhos. De mostrar a minha façanha a todos, mesmo que para ouvir que era uma cópia fajuta, não importasse a minha idade. Ora, como se meninos assim já devessem saber alguma coisa relevante, como se crianças de três anos não devessem querer outra coisa senão atenção e cuidado.
Para mim, o desenho era um a mais nas palavras. Na verdade, era tudo que eu sabia ao lado dos símbolos que eu não conhecia. As letras ainda não me tinham nenhum sentido comum, mas tinham em mim um sentido específico. Abóbora para mim queria dizer fim do mês na cidade. Cada vez que a palavra se desenhava, eu repetia: é fim de mês. É dia seis ainda, minha mãe corrigia. Mas isso não interessava muito, porque para mim, abóbora era fim de mês na cidade, e ninguém me convenceria do contrário.
Quando fui aprender as palavras, aos cinco anos, tive várias crises. Quando soube que fim de mês na cidade era escrito com cinco palavras diferentes e sem sentido, não quis copiar da lousa, porque eu já tinha definido o seu sentido, e não havia semântica capaz de mudá-lo. Era uma palavra só, e se dizia abóbora. Então a professora quis me ganhar. Mostrou na minha cartilha algo que ela chamou de abóbora de verdade. Disse:
- Que é isso?
Abóbora, eu disse. Depois do então, ela quis saber como eu distinguia o fim do mês na cidade daquela coisa grande e alaranjada. Eu não sabia, porque isso ninguém me havia ensinado, e, decerto, as coisas que aprendemos sozinhos têm significados sozinhos, sem serem comuns. Ela me ensinou que coisas têm nomes especiais, particulares, e me fez repetir que abóbora não era fim de mês na cidade.
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